Aquela manhã acordou sob um sol esplendoroso.
Estávamos pelos meados do mês de Março.
Da janela de sacada do meu quarto, onde muitas vezes me
sento a ler, disfrutava de um quadro paisagístico privilegiado, para o Douro vinhateiro,
mas que nesta altura nos oferecia um outro espetáculo, de uma beleza inigualável.
São as amendoeiras e cerejeiras em flor.
Tricotavam as encostas emprestando-lhe uma beleza húmica, um
senário deslumbrante.
A minha casa ou paraíso como lhe chamava o meu Pai, ficava sobranceira
à margem direita do rio Douro, estávamos em pleno coração da zona demarcada do
vinho do Porto, património da humanidade, e a região vinícola demarcada, mais
antiga do mundo, decretada pelo Marquês de Pombal em 1756 sublimemente escrita
e retratada por Miguel Torga.
Acordei com um doce e terno beijinho da minha Mãe, sussurrando-me.
Acorda Filho!
Diogo?
Vá, acorda!
Anda daí, meu preguiçoso!
Olá Mãe, bom dia.
Esfreguei os olhos, preguicei um pouco e saltei da cama.
Acerquei-me da janela e olhei, para aquele anfiteatro de beleza
única!
O vale de todos os encantos, onde o rio douro, finta e
brinca as escondidinhas com as serras.
Já era um ritual diário.
Não há dúvida, que era a melhor forma de começar o dia!
A minha mãe, tinha de véspera combinado comigo, ir a vila,
para comprar uns ténis e dois pares de calças, já que o meu crescimento assim o
obrigava.
Vesti-me num ápice, e quando desci para tomar o pequeno-almoço
já ela estava na cozinha, a dar andamento a nossa primeira refeição do dia.
Dei-lhe o um beijo, ela retribuiu-me, dizendo.
Olá Dioguinho, bom dia. Dormiste bem filho?
Pelo menos a avaliar pelos teus olhitos parece que sim.
Deixei escapar um bocejo, retardatário.
Dormi bem sim Mãe.
Que motivos havia eu de ter com 13 anos para não dormir bem?
Ainda não tinha entrado no mundo a que os meus Pais chamam
de selva.
Bom, Diogo, vamos lá despacha-te porque ainda tenho de ir
trabalhar.
Eu tinha uma boa relação com a minha mãe, aliás com os meus
pais.
Por vezes lá surgiam laivos de infantilidade, coisa normal
da minha tenra idade.
Estava feliz, gostava de fazer compras, e sabia que além dos
ténis e das calças, em algo mais podia ser presenteado.
Dessa forma, podia oferecer ao Rodrigo, o irmão que eu não
tinha, toda a roupa que não se compadeceu, com o meu desenvolvimento físico.
Era sempre assim.
Passava de mim para ele.
Os meus Pais e Padrinhos do Rodrigo, tudo faziam por ele.
Na aldeia havia um espirito solidário, para com aqueles que
viviam com mais dificuldades económicas.
Outra alternativa, era dar a comissão fabriqueira da nossa
igreja, para que depois procedessem à sua distribuição por famílias
carenciadas.
Atravessamos o jardim fronteiriço da minha casa, com a
escolta do Dique, o meu cãozarrão, presenteando-o com um biscoito e uma carícia.
A minha Mãe, fez-se a estrada que nos havia de levar até a
vila.
Durante a viagem, lá me foi dando alguns conselhos, em relação
ao comportamento e aproveitamento na escola, que tem sido exemplar, alertando-me,
para o meu futuro, que está em jogo.
Chegados, presenteou-me com um pastel de nata que sou grande
apreciador.
Lá fui eu, lambuzando-me pelo caminho, até entrar-mos no pronto-a-vestir.
Eramos bons e habituais clientes.
Fomos recebidos, com saudações efusivas, da parte da Dona
Fernanda, proprietária da loja.
Inevitavelmente, insidio sobre mim, os comentários e as
perguntas.
Olá Diogo, estás grande e supere bonito!
Que olhos lindos!
Não te devem faltar raparigas a traz de ti!
Eu imagino!
Já namoras?
Quem é a sortuda?
Não me importava nada que fosse a minha filha.
Estás um homem!
Nunca entendi muito bem esse comentário, porque acho que
nunca fui mulher lol.
Agradeci-lhe, mas não gosto nada de me ver naquele papel de
cabeça de cartaz.
E muito menos namorar com a filha dela, miúda chata, e sem
assunto.
Muito básica.
Pior ainda foi quando corei, e ela riu de mim, e sublinhou
tudo aquilo que já tinha dito.
Por favor tirem-me deste filme!
A minha Mãe, sabendo que eu me estava a sentir confrangido,
abreviou a conversa dizendo, que estava com alguma pressa e até estava mesmo,
já que ainda ia trabalhar.
Mas foi ótimo, já que a nossa tarefa avançou de forma bem célere.
Reconheço que também nunca tive pachorra para perder muito
tempo a fazer compras.
Acho que as lojas, devem ser local de visita, para
adquirirmos o que necessitamos, e não estar ali a fazer sala.
Lá escolhi os dois pares de calças, que acabaram por serem três, já que a dona Fernanda, resolveu fazer um bom desconto, e trouxe uma sweatshirt cor verde-mar, muito bonita.
De seguida, dirigimo-nos a sapataria, onde habitualmente tem ténis Giros.
Respirei de alívio quando me vi libre daquela senhora, e do
seu questionário, e dos elogios.
Uf, até que em fim.
Estava a ver que não.
Estava perto de um ataque de nervos.
Ela e simpática, mas é grande melga!
A minha Mãe, soltou uma gargalhada.
Entrados na sapataria, logo me assaltou a vista, uns ténis
muito bonitos em tons de preto e laranja.
Mas reparei que eram os mais caros.
A minha Mãe deixa que seja eu a escolher, diz que se é para
mim, eu é que devo fazer.
Claro está, dentro de limites de quantidade e valor.
Embora vivêssemos de uma forma desafogada, os meus Pais
trabalhavam muito para manter, o nosso padrão de vida.
Ficava sempre embaraçado, quando a minha Mãe me questionava.
Então Diogo, quais são os que gostas?
Disfarcei, fazendo um olhar
corrido por todos, mas estava-me na retina os ténis pretos e laranja.
Ela, que me conhece como ninguém,
esticou a mão e pegou neles.
São estes?
Leu nos meus olhos a minha resposta.
De uma forma espontânea deu-me um
beijo.
São muito bonitos, eu gosto muito
deles Mãe.
Mas são os mais caros!
Pois, tu tens olho para as coisas
boas, e ainda bem que assim é.
És um rapaz de bom gosto!
Comentou a funcionária da loja.
Calcei-os, ó, servem!
Ficam-me bem.
Agora estava de ténis novos, calças
novas e sweatshirt tudo a estriar.
Quando saímos da loja, abracei-a
e dei-lhe um beijo.
Obrigado Mãe!
Faz sempre por mereceres Diogo.
Sabes que só tens a ganhar, se cumprires
sempre com a tua parte.
Eu sei, e vou sempre tudo fazer
para nunca vos defraudar.
Agora apanhas a carreira para
casa, e eu vou trabalhar.
Mãe? Depois fazemos o saco das
roupas que já não me servem para dar ao Rodrigo?
Sim, depois durante o fim-de-semana
fazemos isso pode ser?
Sim claro.
Toma dinheiro para o bilhete e
compra uns bolos para o vosso lanche.
Esbocei um sorriso que me inundou
o rosto.
Tudo aquilo que eu poça partilhar
com os meus amigos, desperta em mim um efeito de felicidade.
Ia convidá-los, para irem lanchar
a minha casa e poder disfrutar desses momentos em que estamos juntos, num
perfeito e harmonioso convívio.
Gosto de ser simpático, com as
pessoas, com as quais me identifico.
Reconheço, que não tenho muitos
amigos, mas os que tenho, são os que fazem por merecer a minha cota de amizade
e confiança.
Sou pela velha máxima, poucos mas
bons.
Nunca a quantidade foi sinonimo
de qualidade.
Ou gosto, ou não gosto. É muito
simples.
Para mim, não existe o
assim-assim.
Sou mais fraturante que
consensual.
Eu sei.
Não faço fretes.
Por tudo isto, na escola diziam,
que eu era antipático e que tinha mau feitio.
Mas nunca foi apreciação que me
incomodasse.
Sou feliz e gosto de ser assim.
Personalidade e carater muito
forte. O resto, bom, o resto estou-me nas tintas para o que digam, ou pensem.
Jamais em circunstância alguma
abdico de ser igual a mim próprio.
Quem não gostar, que ponha na
beira do prato, e estamos conversados.
A minha Mãe, diz que eu tenho o
feitio do meu Pai, herança da qual me orgulho.
Encontrei pelo caminho o André
que tinha ido fazer um recado ao Avô.
Grande estilo!
Ténis novos calças novas, e sweatshirt
nova.
Estás fixe!
Obrigado André.
Bom, vou para casa, tratar da
bicharada, e do meu almoço.
Logo, lanchamos juntos, comprei
bolos para todos.
André, depois do almoço podia-mos
ir dar uma volta de bicicleta.
Boa ideia!
Passa por minha casa.
Vou ver se o Dani e o Rafa e o
Ródri podem vir.
Até logo André.
Bom apetite.
Igualmente Diogo.
Entrado em casa, tocaram a
campainha.
Espreitei e vi o Rodrigo.
Acionei o comando, para abrir o
portão.
Claro está, que o Dique, fez a
escolta do Ródri até à porta da entrada, aos saltos e lambedelas, agitando a
cauda num movimento frenético.
Latia de felicidade, dando-lhe as
boas-vindas.
Ei! Grande pinta!
A roupa e os ténis, são muito
bonitos.
Vi-te a passar na carreira, e
resolvi dar aqui uma saltada.
Hoje não tenho ninguém em casa.
Boa, sendo assim, almoça comigo, tenho
comida que chega para os dois.
Mas?
Vá, sem comentários, não aceito
negas.
És meu convidado.
Torna-se mais agradável partilhar
a refeição com outra pessoa.
Bora lá, vou tirar esta roupa
vestir o fato de treino, e vamos fritar uns riçóis, para acompanhar com o arroz.
Dizem que os olhos são o espelho
da alma, isso no Rodrigo é bem notório.
Já que eles se enchem de brilho.
Era uma união perfeita o azul resplandecente
do seu olhar, com o sorriso de felicidade contagiante, que lhe inundava o
rosto.
Se quiseres Diogo, enquanto
tratas do almoço eu poço ir cuidar dos animais.
Queres?
Sim!
Boa, dessa forma tudo é mais
rápido.
Coloquei um avental, e comecei a
fritar os riçóis, e a pôr a mesa.
Regressado da tarefa, já tudo
estava pronto.
Que bom aspeto!
Eu gosto de cozinhar para os
outros, fazê-lo só para mim acho uma seca.
Está muito bom.
Ainda bem.
No fim de semana, eu e a minha
Mãe, vamos ver a roupa que já não me serve para te oferecer.
Obrigado Diogo.
Nem sei como agradecer tudo que
os Padrinhos e tu, têem feito por mim.
Acredita, és o meu ídolo.
Eu?
Ídolo?
Achas, não quero ser ídolo de
ninguém.
Quero, e fico muito feliz se
fores melhor que eu.
É o que o meu Pai sempre me diz,
quando lhe digo isso.
Eu sei, o Padrinho também já me
respondeu da mesma forma.
Olha, hoje lanchamos todos aqui, Comprei
bolos na vila.
Eu combinei com o André, ir-mos
após o almoço dar uma volta de bike, tenho de ir chamar o Rafa e o Dani.
Pois, só que eu não poço ir.
Então Porquê?
As lágrimas, irromperam de uns
olhos famintos por felicidade.
Tenho um pneu furado, além de
achar, que aquele homem com o qual me obrigam a coabitar, mas que me nego a
chamar Pai, já que não passa de ser um monstro e bêbado intratável, ele fechou-a
com o cadeado.
Se foce só o furo, isso
resolvia-se, eu tenho uma caixa de remendos, na garagem.
Tem calma Rodrigo, tens sido um
verdadeiro campeão, de quem muito nos orgulhamos!
O processo do pedido da tua custódia,
feito pelos meus Pais, está quase no fim, depois já ganho o irmão que não
tenho, e partilhar esta casa contigo, vai-me dar uma enorme satisfação e alegria.
Nem imaginas o quanto anseio a
chegada desse dia, o dia da minha felicidade, já não aguento mais Diogo.
Bom vamos fazer o ponto da
situação da tua bike, e logo se vê.
De outra forma, arranja-se outro
programa para estarmos juntos.
Esta é a minha filosofia de vida,
com o meu grupo de amigos.
Um por todos.
E todos por um.
Só assim vejo o real sentido da
amizade.
Diogo_Mar
Adorei ler!
ResponderEliminarBeijinho*
Sempre muito fortes, estes textos...
ResponderEliminarGrande abraço
r: Também é algo que me fascina bastante! Adoro, acho que temos artistas incríveis, com um talento gigante e uma qualidade infinita, mas que nem sempre recebem o devido apoio.
ResponderEliminarDevem ter sido momentos fantásticos.
Isso também é algo que me tira do sério, até porque as pessoas só devem seguir porque realmente querem e não porque alguém lhes pediu.
Não ralho nem bato, prometo :p
Ser portista é uma das minhas melhores qualidades, posso mesmo jurar que o meu sangue é dessa cor :D sei sim
É um excelente local para se visitar, sem dúvida! Ver as casas logo pela manhã era um regalo, e a paz que se sentia é inexplicável.
Quando lá voltar prometo que deixo um abraço ao carvalho :)
Já segui por ambos os lados e vim de lá com memórias fotográficas fantásticas
Beijinhos*
Um texto que deixa espaço para nos remeter a sonhar o Douro nas suas encostas.
ResponderEliminarFoi com muito prazer que te li.
Abraços
SOL
Gosto de ler estes escritos que dão conta de atitudes que vão fazendo a diferença na vida de tantas crianças (fui professora; a par, nos últimos anos, professora tutora e representante da Educação na CPCJ); também as roupas do meu filho, seguiam para outras crianças...
ResponderEliminarE o Douro é único, sim! Tenho o privilégio de já o ter apreciado de várias perspectivas!
Bjo, Diogo :)
É na simplicidade dos actos, pela sua autenticidade, que se vê a generosidade das almas.
ResponderEliminarExcelente texto, Diogo! E com as paisagens do Douro como pano de fundo...
Adorei!
Bjs
Ana