Estávamos pela última semana de Dezembro, já reinava o
inverno.
O frio apertava, tendo como aliado um vento agreste, que nos
castigava as mãos e a cara.
Senário perfeitamente normal para a época nesta pequena
aldeia do douro vinhateiro.
Encaminhei-me, até ao largo da minha aldeia, ponto de
encontro de gerações.
Os mais velhos, jogavam cartas numa mesa que eles próprios improvisaram
e estrategicamente montaram de fronte a tasca do Claudino, um ferroviário
reformado, que encontrou os anos sabáticos nesta aldeia, onde tem as suas
raízes e por entre copos de vinho e petiscos que a Glória, sua esposa
confeciona de maneira exímia a estimular para mais uma caneca.
Batiam com as falanges dos dedos no tampo em sinal de convicção
na jogada.
Dizia o Luís cocho:
Que havia perdido a parte inferior da perna direita num
acidente de mota.
Eu corto:
Essa é minha!
Nem querias mais nada! Retorquiu-lhe o Sr. Bernardino, com
voz firme.
Eu recorto!
Não esperavas esta, pois não?
AhAhAh!
Aqueles personagens de chapéus de aba larga e rostos encarquilhados
pelas marcas do tempo, são monumentos vivos de sabedoria.
Alguns tinham laços familiares aos meus amigos.
Caso do Sr. João Fonseca, avô do André. Um bom homem.
Jogavam de forma tão envolvente, que nem davam pela nossa
presença, ou estariam a ignorar-nos!
Por vezes, não havia um relacionamento muito cordial, porque
tínhamos alguma dificuldade em os compreender, bem como eles a nós.
Coisas do foço do tempo.
Embora reconheça, que a nossa irreverência por vezes era
extravasada por alguns excessos.
Mas no fundo, eles gostavam muito de nós.
Viam em nós a sua própria continuidade, embora com
diferenças bastante acentuadas, épocas e mentalidades substancialmente diferentes.
O tal modernismo que eles criticavam, e que tinham alguma
dificuldade em compreender.
Estávamos a romper com as enraizadas tradições.
Os nossos cortes de cabelo mais arrojados e os penteados, moldados
com gel, fazendo por vezes colagens aos nossos ídolos do futebol,
arrancava-lhes sorrisos.
Enquanto sacudiam o pó das cartas, tal como diziam, uns
metros a frente, nós puxamos do bolso pelos nossos berlindes coloridos e de
vários tamanhos e posemos em prática o afinco no jogo.
Organizávamos campeonatos.
Para o campeão, era uma garrafa de litro de Gasosa, também
conhecida por Pirolito e três Donuts.
Rapidamente o largo da aldeia, tornava-se palco de convívio
entre gerações distintas, mas de carater e personalidade bem vincada, emprestando-lhe
um contraste muito agradável de ver.
Agora as nossas vozes misturavam-se com as dos velhos.
Só na linguagem vernácula, que por vezes se ouvia, éramos
iguais.
Mais adiante, as raparigas também davam largas a
brincadeira.
Saltavam a corda, jogavam a macaca e ao jogo do lenço.
O nosso grupo, estava reduzido, já que o Daniel tinha ido
passar o Natal a aldeia dos avós paternos.
Fiquei eu o Rafa o André e o Rodrigo.
A entrega ao jogo era tal, que por vezes levava-nos a ter
despiques um pouco acesos.
O Rafa, tornava-se obcecado pela vitória, tinha mau perder.
Mal sabíamos, que a vida se iria encarregar de nos dar
tantas vezes o trago amargo da derrota.
Era uma tarde como tantas outras, em altura de férias
escolares.
A aldeia, adquiria a vida que lhe faltava nos dias em que
estamos em aulas.
Ao longe via-se a magistral torre da igreja, com o seu
imponente sino.
Tínhamos feito uma venda de rifas, tendo como objetivo, angariar
dinheiro para o seu restauro.
Era um verdadeiro talismã da aldeia.
A estreita e íngreme ruela em paralelo desgastado pela
erosão da história, serpenteia o velho casario aos ombros dos vinhedos, até
chegar ao adro da igreja, emprestando à paisagem, um quadro profundamente
nostálgico e bucólico, muito nosso.
O Sr. Jorge que tinha uma loja de eletrodomésticos na vila,
ofereceu uma televisão para o primeiro prémio.
O Sr. António da mercearia deu um Presunto para o segundo
prémio.
E a dona Georgina ofereceu do seu minimercado concorrente
direto do Sr. António o terceiro prémio.
Um bacalhau e uma garrafa de azeite, e uma de vinho.
A tarefa até que não correu mal.
Vendemos na escola, aos professores e contínuos e na vila no
dia de feira.
Aproveitamos a forte presença de muitos imigrantes, que
vieram passar a quadra natalícia, para dessa forma darem um forte impulso, a
realização das obras.
Agora já as nossas vozes tomavam conta do largo da aldeia, ecoando
levadas pelo vento agreste, que varria aquelas paragens.
Era um belo momento de ócio que todas as idades estavam a disfrutar.
Matar o tempo?
Antes que ele nos mate a nós!
Para não fugir da regra, eu e o Rafael, entramos em diálogo aceso,
pelo motivo da batota que estava a fazer.
Os meus Pais, sempre me ensinaram a saber ser vencedor, mas
também assumir a derrota.
Entre algumas palavras mais ásperas e insinuações, por parte
do Rafa, eis que o Rodrigo, toma a minha defesa.
Eu não queria isso, já que sabia do ciúme que ia despoletar junto
do Rafael.
Ele como mais velho, não tinha problema, em bater ao Ródri,
tendo eu que moderar as partes.
Nunca lhe admitia tal atitude.
O Rodrigo, gozava de um estatuto muito especial, era o Irmão
que eu não tinha, além de ser afilhado dos meus Pais.
Embora reconhecesse, que todos nutriam por mim uma grande e
forte amizade, sentia-me o elemento mais consensual, o elo mais forte.
Vá! Parem lá com isso gritei eu, em tão firme.
Esse palhaço arma-se e um destes dias, não vais ter Diogo
que te valha.
Vou-te partir essa boca toda.
Disse o Rafa.
O Ródri, com os seus 11 anos, carregava uma enorme revolta,
pela vivência familiar que herdara.
Só eu o conseguia persuadir, das atitudes intempestivas que
por vezes adotava.
Olhei-o fixamente nos olhos e ele soube exatamente ler o que
lhe pedia.
Remeteu-se ao silêncio, sabendo que dessa forma iria
resfriar os ânimos.
Quando quiseres alguma coisa, vem ter comigo sozinho.
Acrescentou o Rafa, tentando provocar o Rodri, ganhando um pretexto,
para um confronto físico.
Então, tive eu que tomar as rédeas do conflito.
Queres parar com isso Rafael?
Tu não tens nada que oferecer porrada ao Rodrigo.
Primeiro és mais velho 3 anos que ele.
Segundo, no dia em que lhe puseres a mão, vais ter que te
haver comigo.
Eu tento ser justo. Lembra-te que és mais velho, mas eu não
te tenho medo.
O André, já cansado daquele diálogo, disse:
Parem lá com isso.
Já chega, não acham?
Até parece, que não somos amigos, e que não partilhamos os
bons e maus momentos de todos.
Vá, parem.
Foi uma atitude plena de sensatez e uma grande e
incontornável lição.
Afinal somos todos amigos.
Sem darmos por isso, já a tarde tinha empalidecido e o sol
já pouco ou nada aquecia.
Na torre da igreja, caíam as cinco horas.
Os galos e garnisés da Zulmirinha faziam coro com as
badaladas, sinal que estava na hora de nos recolhermos.
Ainda tinha que ir dar alimento aos animais.
Galinhas, Coelhos e os perus, que estava ansioso por os ver
no forno, porque são maus, já me tinham infligido alguns ataques nos braços e
mãos.
Levantei-me e disse-lhes:
Bom, está no ir!
São horas.
Vou lanchar e tratar da bicharada, para quando os meus pais
chegarem, estar tudo em ordem, tal como me recomendaram.
Gosto de cumprir com as minhas obrigações.
Hoje ganhaste Rafa, parabéns.
Mas tem lá calma, ainda faltam jogos!
Sim, eu sei Diogo.
Ainda faltam jogos para tu perderes, AHAHAH!
Ou não, murmurou o Rodrigo.
O Rafael, olhou-o de maneira fulminante, levantando-lhe a
mão, para concretizar os seus intentos.
Mas rapidamente coloquei cobro as intenções dele.
Segurei-lhe o braço com firmeza e olhos nos olhos disse-lhe:
Ou paras de uma vez por todas com esse teu espirito
agressivo, ou então deixas de ser meu amigo hoje aqui e agora.
Entendeste Rafael?
Entendeste mesmo?
Não vou voltar a repetir o que acabei de te dizer.
Isto é uma vergonha! Disse o André, que partilhava em muito
a minha maneira de pensar e agir, além de fisicamente sermos tão parecidos, que
diziam sermos irmãos gémeos.
Fazíamos uma diferença só de duas semanas de idade, estávamos
pelos 13 anos.
Diogo, Mas ele?
Ele, tem nome. Chama-se Rodrigo.
Vive na mesma aldeia que tu, anda na mesma escola que tu e
faz parte do nosso grupo de amigos.
Entendes?
Chau Rafa, fica bem.
Virei-lhe costas, sem o cumprimentar.
Foi para o fazer sentir, que estava magoado.
Mas pelo canto do olho, vi a expressão de arrependimento,
que tinha no seu olhar.
O Rafa, como qualquer outro do meu grupo, tinha pavor de
perder a minha confiança e naturalmente a minha amizade.
Convidei o André e o Rodrigo a virem lanchar a minha casa.
O André não quis já que tinha algumas tarefas para executar.
O Ródri, negou o meu convite de forma nada convincente,
senti que ele estava com vontade de vir.
Bom André, até mais logo.
Até, Diogo e Rodrigo, chau.
Ródri, vá, anda lá a minha casa lanchar.
Os olhos dele, ficaram ainda mais azuis, e surrio.
Poço ir mesmo?
Claro que sim, de outra forma não tinha feito o convite.
Bom, Bora lá.
Dirigimo-nos para minha casa, onde no jardim, já estava o
Dique a nossa espera.
Latia e estava com orelhas afitadas, a sua longa cauda
agitava-se num movimento frenético, em sinal de satisfação e alegria por me ver
de volta.
Ele nutria uma grande empatia pelo Ródri, já que era, uma
visita assídua da minha casa.
Aliás, assim como todos do nosso grupo.
Por isso, não tinha qualquer preocupação, com o
relacionamento do Dique com os meus amigos.
Ele sabia da nossa amizade e era muito cordial e simpático.
Era um cão bastante corpulento e forte, raçado de Lobo da
Alsácia, de olhos azulados, pelo acinzentado com umas orelhas grandes e uma
longa cauda, muito bonito e inteligente.
Claro está, que tive de proferir algumas palavras de ordem,
para evitar as longas lambedelas e saltos, de alegria por nos ver.
Ele bem que se lembra, das nossas idas até ao rio, com ele
para dar uns bons mergulhos no verão.
É um grande e verdadeiro amigo, com quem partilho muitas
brincadeiras e com quem falo.
Dique, aí!
Estás a ouvir!
Quieto!
Ele obedecia-me, porque já sabia, que era sempre
recompensado por isso.
Lá tinha um biscoito.
O Rodrigo, não passava sem lhe fazer uma festa e claro, em
troca lá vai uma lambedela.
Pousava as patas dianteiras por sobre os nossos ombros, como
se de um abraço se tratasse.
O meu cão, faz parte da nossa família e porque não dizer, da
nossa vida.
Era mais um agregado familiar, lá em casa.
Finalmente já na cozinha, preparamos o nosso lanche.
Ainda haviam vestígios de sobras de iguarias do Natal.
O que claro está, nos agradava imenso.
Depois de termos aconchegado o estômago, fomos tratar dos
animais, que reclamavam, lembrando-nos que estava na hora do repasto.
Dirigi-me ao galinheiro, enquanto o Ródri, foi tratar dos
coelhos.
Depois tinha a tarefa mais complicada, os perus.
Raios de animais parvos e maus.
Tinha de lhes dar comida, sempre prevenido com um pau na mão
esquerda, para qualquer investida.
Lembro uma vez, tive de recorrer a violência e desferi uma
paulada certeira na cabeça do peru, que o deixei em nocaute durante uns
minutos.
No momento fiquei preocupado, pensei que o tinha morto.
Ia ser tarefa complicada, de dizer aos meus Pais.
Mas se tivesse de ser, lá tinha que assumir as consequências
do meu ato.
O que é certo ele não morreu e ainda durou mais uns tempos,
até o meu Pai lhe dar o merecido prémio, o forno.
Bom, sempre vos digo que me deu grande prazer espetar-lhe o
dente.
Era a minha vez de me vingar, dos ataques que por vezes eu
era vítima.
Concluída a tarefa, eis de regresso.
O Rodrigo, começou a olhar incessantemente para o relógio ficando
nervoso, já que tinha de estar em casa, antes da chegada do Pai.
Diogo, desculpa, mas sabes que por mim, ficava aqui mais
tempo, ou até para sempre, mas tenho de ir embora, para não haver problemas.
Mesmo assim vamos ver como ele vai chegar.
Estou cansado desta vivência, de discussões e acreções lá em
casa.
Um destes dias, se a minha mãe não fizer queixa a polícia,
sou eu que o faço.
Aquilo é um monstro, bêbado intratável.
Ele é meu Pai, pena é que o seja só de nome.
Ser Pai, é ser como é o Padrinho.
Tens muita sorte, e mereces ter um Pai assim Diogo.
Digo sorte, porque não somos nós que escolhemos os nossos
Pais.
Logo, não devíamos nascer para sofrer desta forma.
Um dia, que seja Pai, vou dar tudo que eu nunca tive aos
meus filhos.
Eles não pedem para nascer, logo eu só tenho de dar o meu
melhor a eles.
Estou-te a dizer isto ati Diogo, porque és o meu melhor
amigo.
Aliás, és um irmão.
Tens feito tudo por mim.
Acrescentou já com a voz trémula.
Nunca te vais arrepender disso, podes ter a certeza.
Rodrigo, não faço mais que a minha obrigação como teu amigo.
Sinto-me realizado em dar aos outros, preenche-me o coração.
Fico feliz, ao ver que o meu contributo, minimiza o
sofrimento de alguém que é meu amigo.
Selamos aquele momento, com um forte e sentido aperto de
mão, como que perpetuasse a nossa já longa e pura amizade.
Até a manhã Diogo, e obrigado pela companhia, e pelo lanche.
A, e obrigado por seres meu amigo.
Vá, deixa-te lá disso Ródri.
A minha casa, tem as portas abertas para os meus amigos.
Olha, já vais?
Não falta nada?
Não!
O quê?
Meti a mão ao bolso e tirei uma chicla gorila.
Toma.
Obrigado Diogo!
Quero que saibas, que a minha amizade por ti, não é
interesseira, peço-te, para não me dares nada.
Continuarás a ser o meu Irmão.
Mais uma vez obrigado Diogo.
Dirigiu-se para o portão acompanhado pelo dique a quem deu
uma bolacha que tinha guardado do lanche.
Vá, toma lindo.
O Dique retribui-lhe com uma lambedela, agradecendo-lhe o
gesto.
Tchau Diogo.
Tchau Rodri.
O seu paço, era retraído, notava-se a ausência de vontade de
ir para casa, pelas razões que bem conhecemos.
Eu, ficava triste, por estar sozinho, Embora os meus Pais,
estivessem para chegar, mas acima de tudo, pelo sofrimento do Rodrigo.
Ele não merecia. Aliás, ninguém merece sofrer.
Chegado a esquina da rua, olhava sempre para traz para me
dizer adeus acenando com a mão.
Eu retribuía o gesto.
Já era um ritual nosso.
Amanhã por certo, havia-mos de voltar a estar juntos, para
mais um dia de brincadeira, e mais uma aula da escola da vida, onde o tempo é o
mestre, e nós meros aprendizes.
DIOGO_MAR
Aprende-se tanta coisa com as histórias dos outros
ResponderEliminarQue neste dia 1º de janeiro você possa dar os primeiros passos para realizar seus sonhos e atingir as metas propostas para este novo ano que está começando, você pode, e mais do que isto, você merece !
ResponderEliminarBeijos, feliz 2015.
Boas festas, ótimo 2015 pra ti! Muitas realizações, alegrias, saúde e inspirações ;))
ResponderEliminarBeijoo'o
r: Muito, muito obrigada pelas palavras!
ResponderEliminarEstou inteiramente de acordo. Temos que saber ler nas entrelinhas e retirar as conclusões daquilo que nos acontece, até porque nos serão úteis para o que virá depois. Tem que haver um equilíbrio entre a parte emocional e a racional, mesmo que nem sempre seja fácil.
Agradeço e retribuo, que 2015 seja um ano fantástico!
Ora essa, não tem que agradecer. É com o maior gosto que o faço
Beijinhos*
Olá Diogo
ResponderEliminarA escola da vida deixa-nos lições impossíveis de serem esquecidas.
Um feliz, própero e saudável ano novo!
Abraços
Diogo, agradeço a visita e comentário!
ResponderEliminarDesejo que no Ano 2015 todos seus sonhos se realize!
Muita Paz Amor e Prosperidade!!
Feliz Ano Novo!!
Bonito o conto e a amizade .Um bem que quando espontâneoa e verdadeiro dura a vida toda.
ResponderEliminarObrigada da visita espero que 2015 seja de muitas e novas amizades,
Um grande e Feliz Novo Ano ou Ano Novo ... as duas formas nós queremos com saúde e Paz.
abraços
Desfiaste memórias que pareciam não ter fim; vocês os mais jovens, os mais velhos, a vida no largo das aldeias, as amizades formadas a partir da escola...o divertimento, os problemas... Muito interessante.
ResponderEliminarFeliz Ano Novo, Diogo!
xx
A vida ensina tanto, ou serão as memórias que conservamos dela?...
ResponderEliminarGostei muito, Diogo.
Votos de um Feliz Ano Novo!
Beijinhos
Nossa! Obrigada por lembrar de mim
ResponderEliminarAgora fechei os blogs, só estou no face.
Feliz Ano Novo para você
Abç
Dorli
E assim é a verdadeira amizade... pura... quando se mantêm, mesmo pelos anos fora, sobrevivendo aos desencontros, e contrariedades da vida...
ResponderEliminarBelíssimo texto! Parabéns!
Um abraço
Ana