sábado, 31 de outubro de 2015

ESCRITO À NOITE



Aquela gélida noite de Janeiro, tinha uma cara carrancuda, o céu vestia-se de um breu carregado.

O vento, feria-me os ouvidos, pela forma incessante como uivava, no pequeno postigo junto da lareira.

Por sobre a mesa um jarro com vinho e dois copos, e o cesto do pão.

Eram as marcas que restavam do jantar.

Ao canto, um cadeirão, com a madeira já carcomida, pela erosão dos anos.

Sobre o espaldar, uma manta, que servia de aconchego, à minha permanência, Junto da lareira, onde repousava no escano, palco de inspiração, à leitura de Neruda, brindado com o néctar dos deuses, numa cúmplice aliança feita com Baco.

Ali estava eu, entregue e rendido ao encanto daquele momento, no calor, e na luminosidade do lume, que me aquecia o corpo inerte.

Só à mestria das páginas que devorava, levava-me a viajar, perdendo-me nos recônditos cantos da noite.

O vento, com um cantar sinistro, lançava gritos lancinantes de fúria, encarnando a voz do demo.

Ia tentando exorcizar, a minha irritabilidade, perante aquele quadro em volto num manto negro, que esmagava o meu peito.

Só o tique taque do velho relógio de parede, e o crepitar da lenha numa fogueira já a empalidecer, marcavam a cadência do tempo.

Gostava de viver aquela intimidade enigmática, desafiadora e apaixonante.

De súbito, um piar estridente ecoou, despertando em mim a curiosidade.

Acerquei-me da janela, e após alguns minutos de espera vislumbrei uma coruja que seria mensageira da noite, que fazia voou picado para o seu ninho, na copa de um imponente carvalho secular, na encosta sobranceira à minha casa.

As árvores vergavam-se às ordens do vento, como se de uma vénia se tratasse, ao vergastá-las de maneira severa e impiedosa.

Ao longe, vi uma luz que rasgava a escuridão vinda da janela do casario, no povoado.

Alguém que tal como eu, estaria a fazer serão, ou deixaria a luz acesa, para afugentar as almas penadas, que diziam divagar em senários como aquele.

O facho de luz, desventrava o manto de luto, que aquela gélida e misteriosa noite ocultava.

Fechei as portadas, e tranquei a porta.

O lume já se despedia, emprestando um ambiente sorumbático, à cozinha.

No velho relógio caíam as duas horas.

Fumei um cigarro, bebi o último trago de vinho, e encaminhei-me para o quarto.

Nesse percurso, fui assaltado por um arrepio, ao deparar-me com os olhos do Farruco, que mais pareciam duas lanternas.

Era um belo e enorme gatarrão.

Ali imóvel, Esperava pacientemente, pelo meu recolher aos aposentos.

Era um ritual que ele fazia questão de me oferecer, na sua gratidão felina.

Quando me via pegar num livro, de imediato ocupava um lugar bem perto de mim, para eu lhe ler a história.

Por vezes dava com ele, a colocar uma das patas dianteiras, por sobre a página, parecia crer tatear as letras impressas no papel.

O Farruco, é um bom amigo e confidente.

Já tinha ocupado o seu lugar, na poltrona ao canto do quarto, onde pernoita.

Eu reconfortado no meu leito, moldei o meu corpo, aquela figura angelical com quem dividia a vida, emparcelada no mapa de um amor, dedicado e de corpo inteiro.

Dormia profundamente.

O calor bem como o cheiro da sua pele, era o melhor bálsamo para esquecer aquela noite tenebrosa.

Afaguei-lhe os cabelos, sussurrei-lhe uma boa noite, e selei aquele momento com um demorado beijo, nos seus lábios da mais pura seda oriental.

Mergulhamos no sono dos justos, esperando pelo raiar de uma nova aurora.

Até amanhã amor.

 

 

DIOGO_MAR

1 comentário:

  1. Um belíssimo final de dia, pleno de cumplicidades e partilha, com tudo o que nos rodeia, e dá prazer...
    Excelente texto, Diogo! Descritivo, e muitíssimo bem construído!...
    Abraço!
    Ana

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