quinta-feira, 16 de outubro de 2014

À SOLEIRA DO TEMPO_História_5



Guardo bem presentes, os dias que passava em casa da minha Avó.

Um palco, recheado de histórias de uma vida, da qual eu era um herdeiro direto.

Debruçada sobre a aldeia, gozava de uma paisagem sublime.

Gostava de ao acordar, acercar-me da janela, abrir as portadas de madeira, preguiçar e soltar o bocejo matinal, esfregar os olhos ofuscados pelo sol, e contemplar todo aquele quadro de uma blesa inigualável.

A aldeia parecia carregar-me aos ombros.

Via todo o casario, e o caminho em terra batida que o serpenteava.

Lá ia o carro de bois,  com o seu imponente jugo, era audível o som característico que imitia.

Guiado por um homem, de rosto castigado pelo tempo, vestia uma samarra, levando na cabeça um chapéu de palha, com largas abas, munido do aguilhão que usava para reprender o gado.

O vento trazia até mim, a sua voz de comando para os animais.

Mais ao fundo o campanário, com o relógio que de quinze, em quinze minutos quebrava o silêncio daquelas paragens, com um som roufenho.

A perder de vista o rio, onde estava a velha barcaça de transportar os animais para a outra margem.

O fumo libertado pelas chaminés, fazia um bailado com o vento, seria ele o seu par?

As minhas narinas eram inundadas pelo cheiro a café e a torradas.

Mas o maior encanto era o perfume que a lenha libertava.

Bom, o próximo passo, era fazer a oração, ao anjo da guarda, esculpido na madeira da caixa de música, onde tinha um cordel que puxava para escutar a melodia que embalava o meu sono, e me projetava até as estrelas.

Ela estava sobre a cabeceira da minha cama de ferro trabalhado, onde me joelhava de mãos unidas dizendo:

(meu menino Jesus, dá-me a tua mão, que eu sou pequenino, poço cair ao chão)

(Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia).

Pós este ritual bi diário, que a minha Avó me havia ensinado, afagava com um olhar, os móveis em castanho, com tampos em mármore.

Ao centro da cómuda,estava pousada uma imagem de nossa senhora de Fátima, e o retrato do meu Avô.

A um dos cantos, um lavatório em esmalte, agora tornado adorno.

Uma bacia, que encaixava numa estrutura de ferro, sob ela estava um jarro e um balde.

A minha Avó, cuidava do meu quarto, com o amor e carinho, que fazia questão de me presentear.

Assolhava as roupas da minha cama, deixando-as com um cheirinho a sol, eliminando dessa forma os vestígios do odor a naftalina.

Nunca esquecendo de colocar a minha mantinha dobrada em quatro, pousada na minha travesseira bordada pelas suas mãos cheias de mundo.

Do mobiliário, aos adornos, tudo transpirava capítulos de um álbum do tempo, que agora pareciam estar expostos numa galeria de arte antiga.

O cheiro a cera, que imanava o soalho dava um toque de frescura, a uma casa onde eu me sentia feliz.

O tique taque do relógio de parede, marcava a cadência de uma espiral de momentos calibrados pela poeira dos anos.

O fio do tempo, era como se fosse uma teia tricotada, por sacrifícios, bordados de lágrimas suor e sorrisos, a que as suas rugas, e o seu xaile davam uma textura imensamente doce.

Ali os anos estavam encaixilhados num quadro de memórias, aos quais, o tempo e o relógio eram indiferentes.

Ao canto da sala, morava um cadeirão de madeira imponente, todo torneado e lavrado, que me dizia, que estavam ali guardadas leituras de obras ancestrais, de páginas já amareladas, e com cheiro a papel velho que os anos castigaram.

Era onde o meu Avô, gostava de repousar o corpo e os olhos, sobre uma vida que a velha estante encerrava.

Agora que ele tinha partido, levando com ele uma larga cota da alegria da minha Avó.

Ela, gostava de me olhar sentado no velho cadeirão, eu reparava, que no seu olhar bem explícito, cintilava, um misto de nostalgia e de orgulho, por eu estar ali.

Certamente, lhe trazia a lembrança o meu Avô.

Eu carregava aos ombros, tão pesada, mas tão enriquecedora herança.

Ao centro, uma longa mesa, que se enche pelo natal, com uma toalha toda feita em renda, pelas mãos mágicas e noites mal dormidas, daquela mulher de beleza única, um autêntico baluarte da nossa estrutura familiar.

A lareira, transmitia um calor melancólico, mas muito aconchegante.

Sentados num velho escano, íamos debruando as palavras em torno de peripécias vividas em épocas bem distintas.

Ao lume, lá estava sempre o pote, onde era confecionada, a sopa mais maravilhosa, que eu havia comido.

Pousados num guarda-loiça, uma verdadeira coleção de compotas, que a minha Avó, tão bem sabia dar corpo, e que me presenteava nas minhas idas a sua casa.

Aquele olhar carregado, de ternura e cheio de ânsia, por fazer mais, e ainda mais, testemunhavam o quanto ela sabia ser uma boa anfitriã.

O silêncio era rompido pelo crepitar da lenha, a contra passo das batidas do velho relógio, que teimosamente persistia em evidenciar, o ritmo de uma casa, cúmplice da calmaria.

Os retratos de família, juntavam-se a uma imensa coleção de utensílios, caídos em desuso.

Uma máquina de cozinhar e um candeeiro a petróleo, uma candeia, de azeite, a juntar a vários adornos de porcelana e os candelabros rendilhados, emprestavam-lhe um ambiente muito próprio.

Era um verdadeiro álbum infindável de conhecimento, e experiências, que me ajudavam a crescer, e valorizar a vida, que transpirava história por todos os poros.

Na hora da despedida, havia sempre um ritual que eu a acostumei.

Junto a porta de saída, num bengaleiro, estavam a bengala e o chapéu do meu Avô.

Eu colocava-o na cabeça, e pegava naquela que foi a sua segunda companheira.

Arrancava-lhe um belo sorriso, envolto em nostalgia, a um rosto cheio de candura.

Fica-te bem Diogo!

Gracejava a minha Avó.

Ela era um monumento vivo, de experiencias de vida que eu herdara.

A riqueza de uma família, reside no testemunho que atravessa gerações.

Como de um caminho se tratasse, que serpenteava as nossas vidas, numa escola onde as lições ficam sempre incompletas!

Ou não fosse a vida, uma escola que todos frequentamos, onde o mestre é o tempo!

 

 

DIOGO_MAR

2 comentários:

  1. Mais uma bela história que o meu amigo nos quis agraciar com uma linda personagem da AVÓ, Papel admirável que têm as avós !!! ( é que eu já pertenço a essa classe) de quando vou deitar os netitos contando as nossas histórias e ensiná-los a dizer : Jesus amigo fica comigo . Obrigada Diogo , é lindo ! Gostei de ler !

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  2. Estive a ler alguns textos. Impossível comentar tudo por falta de tempo.
    Parei neste, não por ser o mais rico literariamente, mas porque é da Memória...
    E eu também ando a escrever sobre a minha avó paterna que partiu tinha eu 16 anos. Mas marcou-me o imaginário, povoando-o!
    :)

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